A reflexão sobre o atual momento da ordem mundial partiu de contribuições de companheiras das Filipinas, Turquia, Brasil e Estados Unidos. Entre os elementos comuns, o antifeminismo figura com centralidade nas construções dos novos regimes da nova ordem neoliberal, que impõe governos baseados na opressão das pessoas pobres e consideram as lutas feministas contra a violência e a exploração como ameaças. Uma das ferramentas utilizadas pelo sistema é a guerra às drogas, que mata pessoas pobres nas Filipinas e em outros lugares do mundo. O neoliberalismo é um projeto autoritário para os mais pobres, e isso se acirra com o ascenso da extrema direita. Não se pode perder de vista as perspectivas radicais do feminismo, e a defesa da democracia não pode se dissociar da luta por uma transformação do modelo econômico e social.
Embora o atual momento político tenha características que são, de fato, novas, muitas contradições que hoje estão evidentes para o conjunto da sociedade são, na verdade, características intrínsecas do capitalismo heteropatriarcal e racista. Extrativismo, megaprojetos, cortes em educação, saúde, privatização dos comuns, do Estado e mudança climática são todas manifestações concretas da lógica predatória que organiza o neoliberalismo. A agenda representada por presidentes de extrema direita, como Donald Trump nos Estados Unidos, tem raízes antigas e profundas na história dos países, muitos dos quais foram erigidos a partir do genocídio de povos indígenas e da escravidão. A militarização da vida, os mecanismos de controle, o encarceramento da população negra, a criminalização dos movimentos, a xenofobia e o monopólio dos meios de comunicação, são elementos que alimentam a ideologia racista, patriarcal e capitalista e legitimam, diariamente, o terrorismo deste sistema. Em diversos territórios, a militarização tem estreita conexão com as empresas transnacionais, que utilizam o aparelho repressivo do Estado para defender seus interesses corporativos. As mulheres são protagonistas da resistência à militarização, e a estratégia de construção do poder popular é chave para essa resistência. Em muitos países, esse é um momento marcado por derrotas históricas e profundas da classe trabalhadora. Na realidade latino-americana, o ascenso da direita deve ser discutido considerando o lugar dessa região na geopolítica internacional e na acumulação do capital. O ascenso da extrema direita tem a ver com uma crise prolongada, desde 2008, com uma reafirmação de uma hegemonia estadunidense, e com novas características do neoliberalismo, que em outros momentos se apoiou na defesa da democracia e que hoje prescinde dela. É preciso avançar na construção de visões comuns, populares, sobre o que significa a democracia a partir dos valores de justiça, igualdade e liberdade, do poder popular, e como esses conteúdos são centrais para sua defesa neste momento. O ataque ao Estado como garantidor de direitos e o fortalecimento de seu aparato repressor convive com um discurso perigoso sobre representatividade, que faz algumas mulheres se sentirem parte deste sistema que produz lucro e desesperança. É preciso considerar a anormalidade da conjuntura. Forjar uma suposta normalidade democrática nos coloca de frente para falsos dilemas e, sobretudo, falsas soluções. Não há como estar nos espaços de poder sem um processo de construção de poder popular, de organização e mobilização permanente. Visões feministas e acúmulos políticos para enfrentar o capitalFrente a uma realidade complexa, repleta de ataques e ameaças, temos o desafio de construir uma visão comum sobre os tipos de disputas e os enfrentamentos ao capital necessários para alterar o modelo. Não partimos do zero, mas de um acúmulo de visões e propostas construídas a partir da luta coletiva, de sujeitos organizados como a Marcha Mundial das Mulheres, a Via Campesina e Amigos da Terra Internacional.
É preciso apontar a concretude deste sistema de morte, os atentados contra a vida impulsionados por megaprojetos, agronegócio e a militarização dos corpos e territórios. As respostas coletivas a esta realidade também têm que ser concretas. A soberania alimentar e a economia feminista foram apresentadas e discutidas como proposta de resistência. É sobre as bases da economia feminista que se deve construir a crítica à crise econômica, cuja causa é o modo de funcionamento do sistema capitalista, onde os bens comuns e o trabalho das mulheres são compreendidos como fontes inesgotáveis de exploração. Romper com este sistema, portanto, é romper com a divisão sexual do trabalho e com as hierarquias entre produção e reprodução social. A economia feminista é uma aposta política e teórica, uma ferramenta de construção de imaginários da nova sociedade que queremos construir, tanto quanto é a base das práticas que estão sendo empreendidas pelas mulheres nesta construção. Ao colocar a vida e a sustentabilidade no centro do debate e da ação política, a economia feminista nos coloca em outra posição, necessariamente anti-capitalista, e de afirmação da interdependência entre as pessoas e ecodependência em relação à natureza. Os processos organizativos permanentes são fundamentais para a resistência. A diversidade de experiências e de mulheres que compõem as organizações feministas antissistêmicas deve ser uma fortaleza, ao invés de fonte de fragmentação. São estas organizações que têm a capacidade de fazer uma crítica integral ao sistema capitalista racista e patriarcal, e colocar a defesa da vida como interesse central. A defesa dos comuns vem como um instrumento de enfrentamento ao processo de mercantilização e de esvaziamento da política. Os comuns dizem respeito à natureza, à nossa comunicação feminista, à luta contra-hegemônica, aos nossos espaços auto-organizados e |
A defesa dos comuns vem como um instrumento de enfrentamento ao processo de mercantilização e de esvaziamento da política. Os comuns dizem respeito à natureza, à nossa comunicação feminista, à luta contra-hegemônica, aos nossos espaços auto-organizados e populares. São, portanto, uma das chaves fundamentais para nossa organização, que precisa cumprir seu necessário papel diante dos ataques do capitalismo.
São muitos os acúmulos, lições e desafios que a construção de resistências e de alternativas nos territórios aporta para as lutas populares. É importante confrontar o capitalismo ao mesmo tempo em que construímos o projeto de sociedade que queremos viver. Nesse sentido, é preciso avançar de alternativas que convivem com esse sistema, rumo a um projeto emancipatório, incompatível com a lógica do capital. Experiências de resistência concretas, protagonizadas pelas mulheres, aportam para essa reflexão. Na resistência das mulheres curdas o questionamento/reflexão coletiva sobre o que é a política é parte da construção cotidiana das mulheres, em um processo que toma a comunidade, e não a nacionalidade, como base da organização social. Em resistência ao cotidiano de violência e violações colonialistas e patriarcais, comunidades auto-organizadas de mulheres tem sido construídas no Quênia, como alternativa de sobrevivência e exercício de uma vida sem violência. A articulação dessas experiências à luta feminista de resistência ao capitalismo, concretizam o que é a economia feminista no âmbito local e se potencializa na construção da Marcha Mundial das Mulheres. A resistência das mulheres indígenas em vários lugares se organiza a partir de visões conflitantes com as lógicas e visões ocidentais. Defender e proteger a terra e as águas é algo muito sério e importante, porque visualizam a relação de dependência entre as pessoas e a natureza e, portanto, a responsabilidade com o cuidado – ao contrário do sistema capitalista, que calcula, banaliza e destrói os bens comuns. Uma das lutas das mulheres indígenas nos EUA é contra o desaparecimento e assassinato das mulheres, que acompanha a violação e expropriação das terras e dos territórios pelo chamado “progresso” do capitalismo. A força dessas experiências de construção de resistência e auto-organização popular e feminista inspiram os debates e contribuem para a construção do imaginário político do mundo onde queremos viver, dos desafios e contradições que encontramos no caminho de sua construção. A discussão coletiva afirmou a centralidade de empreender lutas que ao mesmo tempo resistam à violência e exploração do capitalismo racista e patriarcal, mas que construam simultaneamente sociedades baseadas na igualdade, justiça e solidariedade. Feminismo em movimento
As mulheres são a principal força de resistência e confrontação ao ascenso da extrema direita em diferentes partes do mundo, o desafio é ampliar a organização permanente.
É comum a percepção da tendência de mercantilização e instrumentalização do feminismo, com a apropriação fragmentada de slogans despolitizando os conteúdos. Isso é perceptível tanto na atuação de grandes empresas transnacionais, que passam uma maquiagem lilás em sua atuação de exploração do trabalho e acaparamento dos territórios – estratégia também encontrada no âmbito da luta socioambiental – como pela forma como a Organização das Nações Unidas (ONU) tem reformatado os discursos de gênero e defesa dos direitos das mulheres. O feminismo que queremos e construímos é aquele que muda a vida das mulheres para mudar o mundo, e muda o mundo para mudar a vida das mulheres, em um só movimento. Este feminismo tem no centro um compromisso profundo com a transformação da sociedade, com a luta pelo fim do capitalismo, do patriarcado e do racismo, porque entendemos que estes sistemas de exploração são a base da opressão que vivemos. Não nos basta representação nesta sociedade. Queremos uma sociedade inteira nova. Para construí-la, é preciso acumular os aprendizados e experiências, e também participar da organização do tempo presente. Nesse sentido, é preciso construir sínteses políticas e organizativas considerando as diferentes gerações políticas que se encontram no feminismo. Apostamos na auto-organização das mulheres, como sujeito político e no processo de reorganização das relações econômicas, e portanto, da vida em âmbito local, e por isso o desafio é a organização permanente, para além de grandes datas de mobilização. O feminismo é um movimento social, um processo político de um sujeito coletivo. A classe é uma dimensão central nesse movimento, assim como é o reconhecimento de que as mulheres trabalhadoras, camponesas, negras, quilombolas e indígenas tem sido sujeitos coletivos, capazes de grandes mobilizações e de confrontos cotidianos ao capitalismo racista e patriarcal. Um desafio – que também é resistência – é não permitir que essas lutas sejam apagadas e ocultadas do presente como já foram na história. As sínteses e convergências na construção da economia feminista como projeto e estratégia de luta, da força popular para transformar as estruturas de poder e as bases que sustentam a vida, conformam o caminho de construção estratégica de movimento que é preciso trilhar. A construção de solidariedade para além das fronteiras, um internacionalismo cotidiano que articula as lutas locais às internacionais e o enfrentamento contundente à lógica do capitalismo racista e patriarcal que ataca a vida são chave nessa construção. Todas essas discussões fazem parte da reflexão da Marcha Mundial das Mulheres em seu processo de preparação da 5aação internacional do movimento, que acontecerá em 2020 com o lema “resistimos para viver, marchamos para transformar”. |